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segunda-feira, 26 de maio de 2014

Tropeços na Redação Científica 2

As ligações perniciosas


Uma das exigências para a redação de um texto científico, tal como para a grande maioria dos textos, é a da continuidade: cada ideia, informação ou reflexão apresentada deve ser claramente relacionada às demais e disposta numa sequência que permita ao leitor acompanhar o raciocínio do autor. Isto obriga o autor a planejar seu texto de maneira que, dentro de uma mesma seção, cada parágrafo mantenha alguma relação de continuidade com o anterior e o seguinte.

Parece que esta exigência - básica, conhecida e aceita - tem representado uma dificuldade muito grande para os cientistas-autores: há um número imenso de textos que apresentam um verdadeiro festival de parágrafos iniciados com expressões como "deste modo", "desta forma", "desta maneira"... De vez em quando aparece um "sendo assim"... 

Isto não seria uma inadequação, não fosse o fato de que, na maioria das vezes, os parágrafos anteriores não fazem referência a qualquer elemento que possa ser identificado com um modo, uma forma, uma maneira, ou algo que permita ao leitor identificar a que se refere o tal do "assim".

É fácil perceber que os autores estão tentando estabelecer alguma forma de continuidade do texto, só que, nestes casos, o resultado acaba sendo inadequado e tornando a leitura desagradável já que aquelas expressões significam exatamente nada.

Quando encontrar uma daquelas expressões, faça dois exercícios. Um: releia o parágrafo anterior e procure detectar, nele, qualquer afirmação que possa sugerir ou ser interpretada como um modo, forma, ou maneira. Se não houver, a expressão é incorreta. Dois: experimente ler o parágrafo no qual a tal expressão aparece, mas como se ela não estivesse ali. Esta omissão prejudicou ou alterou a compreensão do conteúdo do parágrafo e a relação dele com o anterior? Não? Então, a expressão é inútil.

A continuidade entre os parágrafos deve existir, mas ser estabelecida pelas relações entre os conteúdos dos mesmos, não por estas ou outras gambiarras textuais.

Provavelmente, o que vem acontecendo é que, no decorrer do planejamento, o autor ou autores têm o cuidado de decidir sobre o conteúdo de cada parágrafo, mas não se preocupam em definir, também, por que cada parágrafo deve ser colocado naquela ordem, qual é a sequencia do raciocínio que pretendem apresentar ao longo do texto. É a definição clara desta sequência que orienta o estabelecimento de relações de cada parágrafo com os que o antecedem e sucedem.

A lista de ligações utilizadas erroneamente é bem maior que a expressões que apresentei até aqui. Um grupo destas ligações, bastante próximo ao das citadas e que pode passar por crivo semelhante, envolve expressões como "paralelamente" ou ao "mesmo tempo"...

Outro grupo é composto por expressões aparentemente mais sofisticadas e adequadas, como "convém destacar que", "é imprescindível frisar que", "é necessário dizer", que não são acompanhadas por qualquer explicação sobre porque é conveniente, necessário ou imprescindível dizer ou destacar aquilo. Frequentemente não é.

Além da continuidade, outra caraterística desejável nos textos científicos é a concisão: o texto científico não deve conter informações, afirmações ou digressões que não sejam necessárias para que os seus objetivos sejam atingidos. Isto implica em que tudo o que está no texto deve ser importante; caso não seja, deve ser excluído. Destacar algum conteúdo implica, necessariamente, em desmerecer o restante. Por estes dois motivos, se algo deve ou merece mesmo ser destacado, é necessário tornar claras as razões que justificam esta diferenciação. Na ausência destas justificativas, aquelas expressões acabam, normalmente, por ser apenas outras formas de remendos.

Diante deste quadro, antes de cair em tentação, lembre-se que o primeiro mandamento do redator científico é:
...não embromarás!


3 comentários:

  1. Excelente dica! Confesso que me identifiquei... rsrs
    Tentarei cumprir o mandamento! rs

    Abraços!

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    Respostas
    1. Esse é o problema de publicar textos bons do Tomanik: acho que nenhum texto meu escaparia do crivo das recomendações que ele faz :). Tenho me policiado bastante nos últimos tempos e descobri as minhas preferidas: "desse modo", "no entanto"...Quais são as suas???

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    2. André, meu amigo: todos temos nossas preferências (inescapáveis) e elas não são necessariamente erradas. Se há um modo ou um tanto já citados, não há qualquer problema em fazermos referência a eles. O problema é quando eles não existem... (mas você sabe disso...)

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